
apocalipse pretérito
mãe,
obrigada por ter parido
duas mulheres
no limiar do apocalipse.
não sei ao certo quando foi.
mas passou. e resta
um presente estendido,
força esgarçada.
quando acabar de cair essa noite
estarei ereta diante de uma porteira
ou de um portal,
olhos fixos nas estrelas.
que as conquistas sejam
muitas ou poucas,
não importa.
terei vivido a sobrevivência.
celebrado riso e canto.
caminhado de pés descalços
sobre esta espécie de brasa fria.
um lápis queima uma mão.
um olhar fustiga um rosto.
uma presença se faz turbilhão.
não havendo motivos para comemoração,
ao menos nos entreolharemos,
eu e os meus,
e nesse entreolhar dançaremos quietos
estaremos nus
e isso será oculto
pra qualquer olho que tudo veja.
enquanto se derreterem as calotas polares
haverá entre nós
uma teia luminosa de assombro
intocável.
partirei certa de ter estendido as mãos
e tentado olhar as coisas pelo seu através
– não debaixo, nem de cima.
certamente terei falhado mais do que não,
seja esse dia hoje
ou distante.
e não importa.
que a vida não se meça
com régua tão simples
e numa só direção.
no limiar do apocalipse pretérito
há ainda gatos,
cerveja e,
me parece,
poemas a escrever,
insights pela madrugada.
e tudo isso é bom.
mãe, obrigada.